Verdades Parciais: reflexões sobre a autoridade etnográfica

     



                                                                                                              Davi Andrade Pereira


        Ao iniciar sua introdução a obra seminal "A escrita da Cultura, poética e política da etnografia" James Clifford lança um olhar reflexivo sobre múltiplos aspectos relacionais e relacionados ao fazer antropológico, mais especificamente, a escrita etnográfica. Estes aspectos, discutidos histórica e politicamente, são desenvolvidos de modo a situar o discurso etnográfico numa teia de sentidos e de relações de força (de poder) através do qual é concebida enquanto um elemento constituído e constitutivo das práticas de que faz parte. Abordarei aqui a discussão trazida em três eixos relacionados (selecionados  do texto) que julgo centrais para uma apresentação geral da obra, são eles: a especificidade do discurso etnográfico, a textualidade desse discurso, as convenções de legitimação e construção da autoridade etnográfica, a historicidade desse discurso em uma gama imbricada de relações de poder e a sua interdisciplinaridade, culminando na afirmação que o autor faz, de que a apropriação desse senso de “parcialidade” das “verdades etnográficas” e de uma atitude  reflexiva diante da escrita,  oferece, em termos de inventividade e de exploração de  outros modos de escrita, a abertura de espaços para  a sua problematização e apreensão  de outros objetos.
    De forma introdutória, o  autor aborda a escrita etnográfica nos moldes “tradicionais”, personificada na figura de Malinowski, com destaque para o estudo clássico “Os argonautas do pacifico ocidental”, Margaret Mead e Ruth Benedict, onde, segundo o autor, a escrita etnográfica representa ainda um espaço “marginal” nas discussões epistemológicas da própria antropologia,a etnografia, era então,  reduzida a um simples método de descrição  e exposição dos fatos observados. 
   A própria textualidade, a retoricidade e literariedade desse discurso são  dimensões diluídas e deslegitimadoras enquanto elementos de construção de relatos verdadeiramente científicos, isto é, é negada à linguagem e à escrita um papel relevante na construção da etnografia, na mesma medida em que a etnografia pleiteia uma posição de neutralidade e objetividade, alheias às próprias condições de escrita  etnográfica: a própria inventividade e subjetividade incontornáveis em se tratando  dela.
  O autor trás, para contextualizar historicamente o debate sobre a especificidade do discurso etnográfico e o convencionamento de seus critérios de legitimação, autores como Michel Foucault, Michel de Certeau e Terry Eagleton , que demonstram, num cenário mais amplo da história, como, a partir do século XVII, há o aparecimento de um discurso da cientificidade e da objetividade, que, defendendo a cientificidade e objetividade do conhecimento, associa exclusivamente à literatura toda uma gama de meios expressivos, que, segundo esta ordem, estariam ligados a subjetividade ,e por sua vez, a própria subjetividade e linguagem literária, seriam inconciliáveis com a ciência.  
  Assim, argumenta Clifford, a etnografia tradicional liga-se  historicamente a este discurso surgido no século XVII, onde a cientificidade, o positivismo, a objetividade e a empiria advogam uma posição de neutralidade e universalidade em seus conhecimentos. Clifford faz duras críticas a esse posicionamento, vai às suas raízes históricas para nelas  evidenciar justamente os seus elementos contraditórios, que desconstroem a  legitimidade que essa discursividade arroga para si. Questiona a própria possibilidade pleiteada de neutralidade e de objetividade, não no sentido de negar a etnografia o caráter científico, mas, de modo a reflexivamente negar e situar historicamente os critérios que foram utilizados para referenciar essa legitimidade do discurso etnográfico. 
  Clifford oferece, na medida que elenca essas convenções de legitimação do discurso etnográfico, os argumentos que desconstroem a possibilidade de fazer da etnografia uma ciência nos moldes desse discurso tradicional, questiona e desconstrói de forma contundente, inclusive, a possibilidade de que   esses critérios  pudessem um dia ser atendidos. Para Clifford, não faz sentido essa busca pela objetividade da etnografia baseada na neutralidade, objetividade, sincronicidade e na própria relatabilidade da experiência baseada na observação participante, segundo o autor, a etnografia, mesmo quando defendeu essa espécie de autoridade, baseada na própria experiência do etnógrafo, enquanto observador, relatando objetivamente as coisas tal como aconteceram, nunca foi ausente da subjetividade que buscava expurgar. Há , ao seu ver , uma impossibilidade de excluir da etnografia tanto as dimensões da subjetividade, da literariedade,  quanto do caráter político do discurso etnográfico, pois está, mesmo nas condições em que Malinowski ou Ruth Benedict as escreveram, sempre foram construções relacionados a própria retoricidade e literariedade da escrita e a subjetividade e contextualizadas no lugar, no espaço social ocupado pelo etnógrafo e nas relações de força e poder incontornáveis  com seus interlocutores "nativos".
    Ou seja, a etnografia sempre foi escrita, sempre poética e literária, sempre política e parcialmente construída, embora, nunca antes discutida reflexivamente por seus autores nesses termos. A etnografia simulava, com o uso da própria retórica e de modos de expressão literariamente convencionais, um distanciamento, uma objetividade, uma universalidade e uma legitimidade impossíveis, apenas construídas discursivamente, fazendo uso dos próprios meios expressivos que argumentava não interferirem nesse processo. Desse modo, o autor conclui, a etnografia sempre fora subjetiva, literária e política, seus relatos, na medida em que construídos, selecionados e retoricamente (figurativamente) organizados pelo etnógrafo, sempre foram parciais, ou seja, nunca puderam, como convencionalmente  afirmava-se, descrever a totalidade dos modos de existência relacionados a uma determinada cultura, quem dirá, as estruturas e a totalidade das culturas humanas. O autor chega a afirmar que a etnografia pode ser entendida como uma “ficção etnográfica”, recorrendo ao conceito de ficção em duas dimensões complementares, de que ela é construída socialmente, literariamente e também que , em uma certa perspectiva, é ‘falsa”, no sentido de que , embora baseada em elementos de uma realidade observada, os aspectos transpostos de uma realidade observada sempre são interpretados, selecionados e agrupados discursivamente e hierarquicamente a partir do lugar do etnógrafo. Nesse sentido, o significado do título, "verdades parciais", diz respeito não somente a parcialidade no que se refere a elementos que escapam  ao olhar do antropólogo, mas que sua própria posição, gênero, sexualidade, nacionalidade,institucionalidade e intencionalidade influenciam a invenção, a narrativa escrita como resultado do trabalho etnográfico. Ou seja, na própria ausência de neutralidade.
     Desse modo, mesmo que inicialmente buscasse para si uma posição alheia à história, às relações de poder e de força que a sua própria presença em campo constitui, que a sua própria escrita de modo relacional expressa, o etnógrafo, está, inevitavelmente, sujeito a essas dimensões inerentes ao próprio ofício a que se dedica. 
    Nessa linha de raciocínio, a de que as etnografias são “agrupamentos de discursos” e estão imersas de modo relacional em relações de poder e nos próprios modos expressivos e retóricos que a compõe, o autor defende que esta não é razão para pensar que a etnografia não seja científica ou objetiva, mas que esses critérios constitutivos "do bom trabalho etnográfico" são passíveis de transformações, não determinados, e podem ser discutidos e questionados de modo reflexivo. 
    Se a etnografia não é neutra e seus relatos expressam verdades que são parciais, no sentido anteriormente expresso, o autor conclui, então, a incorporação de um “senso de parcialidade” e a construção da etnografia com uma atitude de reflexividade é possível e pode enriquecê-la.  Há a descida do antropólogo da redoma em que se escondia, "olhando sem ser visto", "escrevendo em ser incomodado", da pretensão de um espaço privilegiado, para um lugar problematizado e de reflexividade, no qual esses elementos, antes escamoteados, são amplamente discutidos e apropriados na própria escrita etnográfica. A objetividade,  segundo o autor, é algo possível de alcançar mesmo com a incorporação do  subjetivo, com o que há de literário, com o que há de poético e político. Traz, como ponto central para a especificação do espaço ocupado pelo próprio etnógrafo e o discurso etnográfico, que este busque dimensionar à sua escrita a relação com os seus interlocutores, na descrição que faz da cultura, tornando-se o etnógrafo, na medida que reflete sobre o que observa, abertamente sensível à posição a partir da qual observa, a relação e aos efeitos de sua presença em campo, e, mesmo a retoricidade e literariedade da dimensão escrita de seus relatos.
     Clifford, ainda situa uma série de tendências históricas que julga essenciais para o advento da subjetividade e da própria problematização do lugar ocupado pelo antropólogo, a saber, o contexto da colonização, do declínio do imperialismo, do movimento da “negritude”, apresentado por autores como Aimé Césaire, em suma, um conjunto de transformações que passaram a problematizar a posição do antropólogo, seja enquanto agente da empreitada colonial, seja enquanto ator político. Essa fragmentação da antropologia tradicional abriu espaço para a incorporação de outras perspectivas, hermenêuticas, fenomenológicas e sociológicas, para uma subjetividade maior. 
   Há o próprio surgimento do relato de campo, como um subgênero da etnografia, no qual antropólogo deixa transparecer a sua impressão subjetiva. Também, aponta Clifford, desponta a questão da  autoridade etnográfica, que passa por processos de inovação em diferentes aspectos, com o surgimento do “etnógrafo nativo”, de relatos polifônicos, nos quais a própria autoria é problematizada. 
 O autor  traz duas pesquisas etnográficas, a primeira onde o autor, Richard Price, apresenta um relato onde incorpora reconhecidamente um senso de parcialidade, e, a partir deste, construiu uma etnografia na qual, de modo reflexivo, preenche na mesma medida que constrói as lacunas de sua narrativa, a segunda chamada  “The Sun Dance  and other ceremonies of the Oglala division of the Teton Sioux”, de “autoria” de James Walker,  em que são agrupados uma série de relatos etnográficos díspares, inclusive, um desses, de um etnógrafo nativo, onde a própria questão da autoria e da autoridade monofônica é destituída, abrindo espaço para um trabalho que incorpora diversas "autoridades etnográficas" em um discurso polifônico e inovador.
        Em resumo, a obra apresentada contribui para a desconstrução de um discurso científico objetivista em Antropologia, entretanto, é essencial para outros campos, sobretudo aqueles que não se desvencilharam desse objetivismo, é de interesse a todos aqueles que voltados em produção etnográfica, em áreas diversas, seja a sociologia, a história, psicologia social, pedagogia, ciência política  e a própria antropologia,  sejam esses sujeitos estudantes, “pesquisadores iniciantes”, ou pesquisadores de longa data. 



MATERIAL REFERENCIAL

CLIFFORD, J. Introdução: verdades parciais. In: CLIFFORD, J. e MARCUS, G. A escrita da cultura: poética e política da etnografia. Rio de Janeiro: UERJ/Papéis Selvagens, 2016 (1986).










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