FAZER-SE ARTE: REFLEXÕES ACERCA DO CUIDADO DE SI E DA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA EM MICHEL FOUCAULT



                                                                                                                  Aremilton Junior Costa Cavalcanti

Resumo: O presente artigo trata-se de uma pesquisa desenvolvida a partir da leitura dos volumes II e III da obra intitulada: História da Sexualidade de Michel Foucault, juntamente da análise de artigos desenvolvidos por diferentes comentadores referentes ao estudo do filósofo em destaque. Dividida em três partes, a pesquisa em questão tem como foco: as discussões referentes ao resgate feito por Foucault aos conceitos originais de “ética” e “estética”, as implicações para o sujeito na prática do chamado “cuidado de si”, e a consequente relação de importância referente à elaboração de uma “estética da existência” por parte do mesmo, enquanto trazidas dentro do contexto original do pensamento de Foucault para o âmbito das discussões contemporâneas.

Palavras-chave: cuidado de si, estética da existência, ética, estética, filosofia.

Abstract: This article deals with a research developed from the reading of volumes II and III of the work entitled: History of Sexuality by Michel Foucault, together with the analysis of articles developed by different commentators referring to the study of the highlighted philosopher. Divided into three parts, the research in question focuses on: the discussions referring to Foucault's rescue of the original concepts of “ethics” and “aesthetics”, the implications for the subject in the practice of the so-called “self-care”, and the consequent relation of importance referring to the elaboration of an “aesthetics of existence” by him, while brought within the original context of Foucault's thought to the scope of contemporary discussions.

Keywords: self-care, aesthetics of existence, ethics, aesthetics, philosophy. 

Introdução

A pesquisa em questão foi desenvolvida com o propósito de buscar um aprofundamento das noções acerca de dois conceitos fundamentais discutidos dentro de uma das obras mais importantes do filósofo contemporâneo Michel Foucault (1926-1984)1, sendo estas, respectivamente: o “cuidado de si” e a “estética da existência”, presentes nos volumes II (intitulado: O uso dos prazeres) e III (intitulado: O cuidado de si) da chamada: “História da Sexualidade” (1976-2017)2.

Foi um filósofo, psicólogo, teórico social, historiador das ideias, escritor e professor no Collège de France, em Paris, França, de 1970 até 1984 (ano de seu falecimento), além de ter publicado diversas obras, voltadas para as suas áreas de estudo, de 1954 à 1984 (sendo que alguns dos seus escritos acabaram tendo sua publicação feita apenas postumamente, isto é, após a morte do autor). Engajado no estudo de diversos pensadores pertencentes a diferentes linhas da história da filosofia, foi profundamente influenciado pelas ideias de filósofos, sociólogos, psicólogos e demais pensadores como: Marx, Nietzsche, Freud e Heidegger, além de seu contemporâneo Deleuze.


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     Considerado como um dos filósofos mais importantes do século XX, Foucault desenvolveu seus estudos em torno de três eixos principais: um primeiro voltado para o processo que ele mesmo chamou de: “arqueologia” das ciências humanas, da escrita, da literatura e do pensamento geral; um segundo voltado para a análise das formas de poder e subjetivação, com embasamento na utilização do chamado “método genealógico”; e por fim um terceiro voltado para as questões referentes às “relações do sujeito para consigo mesmo”, no qual, por sua vez, é onde se encontram presentes os conceitos mencionados anteriormente, os quais são o foco das discussões presentes ao longo do referido artigo.

        Os interesses da pesquisa estão voltados principalmente para a análise referencial do estudo feito pelo filósofo em questão. Num primeiro momento, foi realizada uma contextualização acerca do resgate histórico dos conceitos originais de “ética” e “estética”. Na sequência, buscou-se, mediante o estudo dos volumes II e III da História da Sexualidade, em conjunto a leitura dos artigos desenvolvidos por três comentadores acerca dos temas em destaque, sendo estes: Bruno Abilio Galvão3; Jean Farias4; e Stela Maris da Silva5; estabelecer uma série de noções acerca das ações que configuram o que o autor define como sendo: a prática do “cuidado de si” e a consequente elaboração de uma “estética da existência” por parte do sujeito, acompanhadas de uma série de observações direcionadas às inconsistências presentes no pensamento do filósofo, no que refere-se ao contexto histórico dos valores resgatados, na tentativa de conciliação desses mesmos valores com o pensamento atual e também na efetuação das práticas descritas, como será exposto a seguir.

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Trata-se da obra mais conhecida de Michel Foucault. Dividida em quatro partes, sendo: A vontade de saber (1976); O uso dos prazeres (1984); O cuidado de si (também publicado em 1984) e As confissões da carne (tendo sido publicado em 2017, anos após a morte do autor, o qual inclusive não chegou a ser finalizado) respectivamente, a obra em questão é voltada principalmente para o desenvolvimento de uma série de noções por parte do autor direcionadas principalmente às questões biopolíticas envolvendo o estudo do corpo e as respectivas relações de subjetividade mantidas entre os indivíduos mediante a questão corpórea.

Possui Doutorado em Ética e Filosofia Política pelo PPGFIL da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) (2021), Mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (PPGFIL UFES, 2016), Especialização em Ética e Filosofia pela Faculdade Mário Schenberg (2014), Graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (2013) (Bacharelado) e Graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (2011) (Licenciatura). Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Michel Foucault e Nietzsche (pesquisa) e ensino de filosofia (ensino médio e curso pré-enem). Realizou trabalho de tutor no curso EAD Licenciatura em Filosofia entre 2014 e 2019, e atuou como docente externo em Orientação de TCC pelo mesmo entre 2018 e 2019. Foi professor efetivo de Filosofia da EEEFM Ary Parreiras SEDU durante os anos de 2014 a 2022. Atualmente é professor efetivo de Filosofia, nível médio, técnico e tecnológico do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES) Campus de Montanha. Áreas de interesse: Filosofia política; ontologia do presente; Nietzsche; Foucault. Disponível em: http://lattes.cnpq.br/4325069251891816. Acesso em: 29 de mar. 2023.

Doutor em filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica (PPGLM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Possui Graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2013). Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Filosofia. Disponível em: http://lattes.cnpq.br/9769020636947745 https://periodicos.ufjf.br/index.php/eticaefilosofia/article/view/40223. Acesso em: 29 de mar. 2023.

Doutora em Filosofia - Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2020), com Pós-Doutorado em Estudos Comparados na Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Unioeste. Mestre em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1993), Graduada em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (1978). Professora Adjunta da Universidade Estadual do Paraná- Campus Curitiba II e na Faculdade de Artes do Paraná (1990- até o presente), com dedicação exclusiva, onde atua como docente e pesquisadora na área de Filosofia (Ética, Estética e Filosofia) e Metodologia da Pesquisa em cursos de Graduação. Professora do Programa de Mestrado Profissional em Filosofia PROF-FILO Unespar. Pesquisadora no campo de pesquisa da Filosofia Contemporânea, com estudos na subárea de Ética, Filosofia Contemporânea francesa, especialmente no pensamento de Michel Foucault. É membro do Grupo Interdisciplinar em Artes (GIPA) da Unespar Campus de Curitiba II; Linha de pesquisa: “Olhares para os modos de expressão do conhecimento das Artes, com os referenciais da História, da Memória, da Filosofia, da Antropologia, e das diferentes linguagens (Visuais, Literárias, Cênicas, Cinematográficas, Musicais”. Pesquisa Nessa mesma Universidade teve mandato de Diretora Geral de Campus Curitiba II (gestão 2012-2015). Atuou como Docente na Pontifícia Universidade Católica do Paraná no Departamento de Filosofia (1996-2006). Atuou na área técnico pedagógica da Secretaria de Estado da Educação do Paraná e em Núcleos Regionais de educação na Implantação da Filosofia da Sociologia no Ensino Médio. Coordenou a elaboração da primeira Proposta Curricular para o Ensino de Filosofia para o Ensino de Segundo Grau (atual Ensino Médio) no Estado do Paraná. Foi membro do Conselho Estadual de Cultura (CONSEC-PR) (2013-2015), participando da Comissão que elaborou o Plano Estadual de Cultura. Tem vários artigos publicados nas áreas de interesse. Disponível em: http://lattes.cnpq.br/4695103821057915. Acesso em 29 de mar. 2023.

1. Resgate histórico dos valores de ética e estética em relação ao serpage3image10971920 page3image10969840 page3image10971504 page3image10970048page3image10968176

    Através de seus estudos, Foucault buscou desenvolver um resgate histórico-críticodas questões referentes ao ser, encontradas nas mais diversas linhas de pensamento dos filósofos pertencentes aos diferentes períodos da história da filosofia. Para nosso texto, interessam dois conceitos em específico, trabalhados por este autor, a saber: ética (termo originado do grego “ethos”, o qual pode ser interpretado de duas formas, tanto como o “modo de ser”, isto é, com significado nos hábitos e nos costumes de um determinado indivíduo e/ou seu meio; como também a algo que se refere diretamente ao “modo de agir” do indivíduo propriamente dito) e estética (de origem do grego “aisthesis”, com um significado próximo de “percepção” ou “apreensão dos sentidos”, no que se refere ao exercício de observação do mundo por parte do indivíduo através de suas percepções sensíveis) discutidas pelos filósofos pertencentes a tradição grega clássica, os quais são amplamente discutidos nos volumes II e III (O uso dos prazeres e O cuidado de si, respectivamente) de sua obra, intitulada: História da Sexualidade.

    A obra em questão oferece uma série de reflexões acerca das noções referentes aos conceitos de ética e estética pensadas a partir da visão de Foucault7. Estando distribuídas dentro de diferentes esferas de discussão, tais noções podem ser identificadas e divididas em três eixos principais: um epistemológico (voltado para as questões referentes aos saberes e a verdade); um político (voltado para o debate das formas de poder e suas manifestações); e um ético (voltado para o estudo do sujeito e suas ações), sendo especialmente nesses dois últimos em que é possível identificar a comparação feita pelo filósofo entre a noção histórica de um elemento referente às noções do cuidado do ser, para, a partir disso, fazer com que o indivíduo possa desenvolver o pensamento acerca de si próprio enquanto compreendido como obra de arte, no contexto presente. Em outras palavras, fazendo com que o sujeito possa refletir sobre o cuidado de si, o autor possibilita ao mesmo que ele se enxergue enquanto estética da existência.

É de conhecimento que os estudos feitos por Foucault revelam um resgate de diferentes elementos presentes no pensamento desenvolvido ao longo de toda história da filosofia, indo desde os filósofos pertencentes a antiguidade clássica (tratando acerca das noções concebidas pelos primeiros filósofos ocidentais, a exemplo de: Platão e Aristóteles) chegando até os conteúdos referentes aos pensadores contemporâneos (como os filósofos: Karl Marx e Friedrich Nietzsche, e também o neurologista e psiquiatra: Sigmund Freud), os quais o influenciaram profundamente. Contudo, o foco da referida pesquisa está voltado especificamente para as discussões acerca do resgate histórico feito pelo filósofo dos conceitos originais de ética e estética (os quais possuem suas origens no pensamento desenvolvido durante o período pertencente a antiguidade grega clássica), e também acerca das noções referentes à concepção das práticas que constituem o cuidado de si e a estética da existência, ambos presentes em sua obra.

Buscou ser trabalhado, através do seguinte artigo, um exercício de compreensão crítica das questões referentes ao pensamento desenvolvido por Foucault enquanto compreendidas a partir do contexto contemporâneo, voltadas principalmente para os eixos ético e político de sua abordagem. É importante apontarmos que as noções desenvolvidas pelo filósofo em análise vão mais além do que foi tratado ao longo das discussões aqui presentes, porém, a proposta do artigo em questão está voltada diretamente para o aprofundamento no exercício de compreensão acerca das noções do cuidado de si e também da estética da existência, influenciados diretamente pelos conceitos resgatados de ética e estética, mediante a efetivação de um olhar crítico do conteúdo estudado, enquanto traduzido, sob a ótica proposta pelo mesmo, e complementada pela fala dos comentadores trazidos, para os dias de hoje.

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    No que se refere à concepção de ética em Foucault, o mesmo aponta, através de seus estudos, que a mesma pode ser entendida como a forma com que o sujeito relaciona-se consigo mesmo, como evidencia o trecho a seguir: “Para Foucault, a ética é um modo de o indivíduo relacionar-se consigo.” (SILVA, 2007, p. 192)

    Ou seja, trata-se do modo como o indivíduo age e pensa em relação a si próprio. A partir disso, o filósofo passa então a questionar de que forma o indivíduo pode ser pensado enquanto “obra de si mesmo”,em outras palavras, como o mesmo pode se identificar enquanto obra de arte. Para alcançar tal estado, Foucault aponta que o indivíduo deve inserir-se em um processo de auto-constituição moral, de aceitação da diversidade e dos fundamentos ou princípios fundamentadores como sendo considerados móveis e modificáveis, levando o mesmo a alcançar, através de sua liberdade, tal identidade, fundada na noção de ética enquanto compreendida como noção ou princípio gerador da chamada “estética de si”, como Silva deixa claro no trecho:

Então, cabe perguntar, do ponto de vista prático, como se constitui o indivíduo como sujeito moral de suas ações, a sua aceitação da diversidade, dos fundamentos como móveis e modificáveis, enfim, pensar a ética como criação de, e a partir da liberdade, pensar o indivíduo como obra de si mesmo. (SILVA, 2007, p. 192)

    Entretanto, é importante ressaltarmos uma contradição existente no modo como o autor define a relação do indivíduo para consigo mesmo no seu reconhecimento enquanto arte da existência. Apesar de Foucault ressaltar o aspecto de inserção do sujeito num processo permeado pela auto-constituição e aceitação da diversidade, é impossível deixarmos de lado duas questões referentes ao processo de resgate histórico feito pelo mesmo dos valores de ética e estética enquanto concebidos na esfera do pensamento atual. Primeiro, no que se refere às atribuições históricas de ambos os conceitos, pois, apesar de serem enxergados pelo autor a partir do âmbito das discussões presentes, ambos são pertencentes a um contexto histórico completamente distinto, marcado por diferentes formas de exclusão social, no que se refere ao processo de classificação daqueles considerados enquanto “cidadãos” pertencentes a “pólis”, o qual excluía, inclusive: mulheres e escravos do convívio social (aspecto esse inclusive o qual acaba reforçando ainda mais a contradição existente no resgate de tais valores, os quais são oriundos de um contexto excludente, machista e adepto a efetivação de práticas contrárias aos princípios de liberdade humana, tornando-os inconcebíveis nos dias de hoje); segundo, no que se refere a arbitrariedade existente na definição ética do sujeito, a qual, apesar de estar norteada por “princípios fundamentadores”, ainda assim demonstra por diversas vezes aspectos individualistas e/ou até mesmo egoístas no processo de constituição da chamada “estética de si”, onde o mesmo acabaria assumindo um papel de auto-reconhecimento estético o qual desconsidera, em parte, os demais contextos (moral e social) nos quais o próprio se encontra inserido, contextos esses que também deveriam ser levados em consideração, o que, por sua vez acaba descaracterizando tal valor de uma significação “ética” propriamente dita.

As expressões: “obra de si mesmo”; “estética de si”; “cultura de si”; “arte de viver”; “domínio de si” e “arte da existência”, distribuídas ao longo de toda a abordagem foram extraídas diretamente dos estudos feitos pelo próprio Michel Foucault, presentes nos volumes II e III de sua obra: História da Sexualidade.

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    Contudo, apesar da contradição, seria então mediante este processo que o sujeito seria capaz de alcançar o reconhecimento de si próprio enquanto compreendido como “arte da existência”, levando em consideração a efetivação das práticas que, segundo Foucault, conduzem o mesmo a possibilidade de identificar-se enquanto sendo “obra de si mesmo”. Tais práticas configuram aquilo que o filósofo definiu como sendo o: “cuidado de si”, como veremos no capítulo seguinte.

2. O papel do cuidado de si e suas implicações para o indivíduo

    No capítulo 2 de “O cuidado de si”, Foucault deixa clara a necessidade do indivíduo desenvolver o que ele chama de “cultura de si”, referindo-se à função tida pelo mesmo em estabelecer uma relação de cuidado para consigo mesmo, no que se refere aos diferentes âmbitos de sua vida, seja nas relações mantidas entre outros indivíduos (familiares, amigos, interesses amorosos, pessoas do convívio social e profissional), ou então em relação ao desenvolvimento de seus próprios hábitos e formas de pensar (no que diz respeito ao desenvolvimento das práticas cotidianas, desenvolvimento intelectual e profissional, e também a prática de hábitos saudáveis, os quais oferecem benefícios tanto físicos como mentais), como é evidenciado no trecho em questão:

Ora, é esse tema do cuidado de si, consagrado por Sócrates, que a filosofia ulterior retomou, e que ela acabou situando no cerne dessa “arte da existência” que ela pretende ser. E esse tema que, extravasando de seu quadro de origem e se desligando de suas significações filosóficas primeiras, adquiriu progressivamente as dimensões e as formas de uma verdadeira “cultura de si”. (FOUCAULT, 1985, p. 50)

Segundo o filósofo, a relação do sujeito no exercício do cuidado de si seria expressa por meio da relação de domínio que o mesmo manteria sobre os seus “modelos de vida”, tanto doméstica (referente ao convívio familiar) como pública (no que diz respeito às demais esferas de relação social), em que, através do governo de si mesmo e também da administração tanto do lar como do poder político vigente, é que seria possível ao mesmo alcançar a liberdade e o conhecimento, capazes de ofertá-lo um estado de libertação dos próprios desejos, antes dominantes, como mostra Silva no trecho a seguir:

O domínio atingido do sujeito moral seria expresso como domínio sobre si, tanto no modelo de vida doméstica como no modelo da vida pública, onde o essencial seria a constituição da autoridade no governo de si, na administração da casa e no governo da pólis. Esta forma ativa de domínio de si tinha (...) como objetivo (...) governar desejos e prazeres para alcançar a liberdade e o conhecimento. Liberdade de poder que se exercia sobre si, e poder que se exercia sobre os outros. O cuidado de si era a condição para não se tornar escravo dos seus desejos, sendo, portanto a própria liberdade individual. (SILVA, 2007, p. 192)

    Desse modo, Foucault deixa explícito o modo como o indivíduo estabelece as relações de domínio sobre si, as quais, por sua vez, conduzem-no aquilo que o mesmo define como: “arte de viver”, isto é, o alcance de um estado de vida longe dos chamados desperdícios (provenientes dos vícios, das más condutas e também das más escolhas feitas pelo sujeito, por exemplo) e também da morte (no que se refere aos cuidados tomados em relação a saúde do corpo e da mente, visando assim evitar eventuais enfermidades e comorbidades as quais acabam o aproximando de sua morte), como Silva deixa explícito no seguinte trecho: "O indivíduo pode dominar-se, transformar-se na relação consigo mesmo, independente de prescrições. O regime é de uma “arte de viver”, onde se evita o desperdício e requer cuidado para evitar a morte." (SILVA, 2007, p. 193)

    Aqui, é possível identificarmos um potencial exagero dos valores morais atribuídos por Foucault no papel desempenhado pelo sujeito do chamado “cuidado de si”. Nesse sentido, ao desenvolver as práticas referentes ao cuidado com a saúde (física e mental), nas diferentes esferas de relação (a exemplo do convívio social), e principalmente no que o autor define como sendo o “domínio de si” (referente ao controle dos vícios, da má conduta e dos potenciais desperdícios), o indivíduo estaria assumindo um status de moralidade ambígua, totalmente voltado para os princípios considerados “éticos”, os quais reforçam um individualismo pautado na supervalorização de sua condição enquanto sujeito dominante de si, o que por sua vez iria conferir-lhe não só um estado de imparcialidade em relação a diversas situações importantes (nas quais o mesmo seria incapaz de interferir efetivamente, tendo em vista que estas poderiam pôr em risco o frágil controle de seu status moral), como também evidenciaria a inconsistência existente no processo do cuidado de si para com os valores éticos defendidos (tendo em vista que tal processo faria com que este se distanciasse das relações sociais, além de torná-lo egoísta ao reforçar a valorização de si próprio).

    Ainda assim, seria então mediante o cuidado de si, representado através das relações de domínio estabelecidas pelo sujeito no exercício de sua respectiva arte de viver, é que o mesmo se tornaria capaz de elaborar aquilo que os autores denominam: “estética da existência”, como veremos no último tópico.

3. A relação da importância no exercício de elaboração de uma estética da existência

    Em seu artigo, Silva sugere, mediante a análise feita sobre o estudo histórico realizado por Foucault, o resgate dos valores estéticos por parte do indivíduo, os quais estão diretamente ligados ao exercício de controle do mesmo diante de seus desejos e impulsos, demonstrando o que o filósofo referenciado caracteriza como sendo “domínio de si”, como mostra o seguinte trecho:

Na Antiguidade clássica o valor moral do domínio de si é também um valor estético. A liberdade manifesta a vida como obra. O regime físico dos prazeres e a economia que se lhes impõe faz parte da arte de si. É no domínio de si que o sujeito mostra-se em relação a si mesmo. O sujeito de desejo quando tem domínio de si, desenvolve uma arte da existência, determinada pelo cuidado de si. (SILVA, 2007, p. 193)

    Nesse sentido, seria através do controle do sujeito sob seus próprios prazeres (tanto físicos como também materiais), que tal seria capaz de desenvolver os hábitos que constituem aquilo que Foucault identifica como “cuidado de si”, transformando tanto a si próprio (compreendido a partir de suas ações e modo de pensar) como também a sua vida (nesse sentido, compreendida através das noções de convívio social no ambiente onde o mesmo se encontra inserido) em manifestações artísticas, ou então, nas palavras do filósofo referido: “arte da existência”. “(...) As tekhnai, ou artes da existência são referências para as análises que demarcam uma linha entre a razão e o saber, onde está o domínio da estética.” (SILVA, 2007, p. 193)

    A expressão “arte da existência” (derivada do termo grego “tékhnai”) refere-se, num aspecto geral, à função exercida por um cidadão pertencente à cidade-estado grega (derivada do grego “pólis”), o qual, através do desenvolvimento dessa função, acabaria por suprir determinadas necessidades dos cidadãos inseridos dentro do contexto de convívio social da pólis, como Farias comenta no trecho a seguir: “Platão considera o valor das τέχναιna constituição social das πολεῖς10. Isso, pois, os seres humanos, dotados de habilidades distintas, buscando amenizar as carências que têm em comum, reúnem-se em um local e estabelecem o modo de vida coletivo.” (FARIAS, 2022, p. 161)

    Portanto, o exercício de uma arte da existência pode ser compreendido enquanto a efetivação prática de um cuidado consigo mesmo tido por parte do sujeito, referente à valorização de seus próprios valores morais e estéticos, como comenta Foucault no trecho referente ao processo histórico de desenvolvimento da chamada “cultura de si”:

“É esse tema que, extravasando de seu quadro de origem e se desligando de suas significações filosóficas primeiras, adquiriu progressivamente as dimensões e as formas de uma verdadeira "cultura de si". Por essa expressão é preciso entender que o princípio do cuidado de si adquiriu um alcance bastante geral: o preceito segundo o qual convém ocupar-se consigo mesmo é em todo caso um imperativo que circula entre numerosas doutrinas diferentes, ele também tomou a forma de uma atitude, de uma maneira de se comportar, impregnou formas de viver; desenvolveu-se em procedimentos, em práticas e em receitas que eram refletidas, desenvolvidas, aperfeiçoadas e ensinadas: ele constituiu assim uma prática social, dando lugar a relações interindividuais, a trocas e comunicações e até mesmo a instituições: ele proporcionou, enfim, um certo modo de conhecimento e a elaboração de um saber.” (FOUCAULT, 1985, p. 50)

    Dessa forma, Foucault aponta para o modo como o indivíduo insere-se no contexto de exercício de uma estética da existência, pois, ao analisar os valores referentes ao cuidado de si, atribuídos inicialmente pelos filósofos da antiguidade clássica grega, denota a forma como o mesmo lida com os aspectos morais e estéticos concebidos atualmente, dentro de um contexto de valorização de si próprio, seja em relação aos seus próprios valores internos (a forma como lida com suas atribuições físicas e intelectuais), como também externos (referentes à conduta moral em relação aos meios de convivência e as relações sociais), comparando-se a uma manifestação artística, ou então, mais precisamente, a uma obra de arte.

Termo original da palavra grega: tékhnai. 10 Termo original da palavra grega: pólis.

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    É válido ainda destacarmos uma séria inconsistência referente ao processo feito pelos autores na atribuição prática de dois conceitos filosóficos provenientes de um período histórico completamente distinto, enquanto pensados dentro do contexto contemporâneo, onde passam a serem desenvolvidos por parte do sujeito. Nota-se que os valores de ética e estética (atribuídos a prática do cuidado de si e do consequente desenvolvimento de uma estética da existência), são trabalhados por Foucault apenas enquanto pensados a partir dos interesses atuais, desconsiderando, dessa forma, o contexto histórico que permeia a constituição dos mesmos, o qual deveria ser levado em consideração, por justamente representar um componente importante no processo de análise crítica dos valores resgatados.

    Tendo em vista o contexto referente ao surgimento de ambos os conceitos, marcado profundamente pelas influências exercidas através de uma estruturação política desigual, faz-se necessário a realização de um exercício reflexivo voltado para o processo de constituição dos valores originais de ética e estética, no qual sejam levados em consideração todos os aspectos referentes ao pensamento ocidental, inclusive no que se refere às formas políticas de governo que regiam as cidades-estado gregas (principalmente, no que diz respeito ao fator de exclusão social daqueles que não eram considerados enquanto “cidadãos” pertencentes ao contexto político-social da pólis, a exemplo, mais uma vez: das mulheres e também dos sujeitos desprovidos de liberdade) e a forma como estas influenciaram diretamente na formulação de tais valores (os quais iam de acordo com os interesses dos indivíduos considerados enquanto “homens livres”, detentores do poder político de administração da cidade), para que assim, mediante o desenvolvimento de uma consciência crítica pautada nas questões históricas referentes aos conceitos resgatados pelo referido filósofo, enquanto traduzidas sob novas perspectivas para o contexto atual, torne-se possível a precisa efetivação por parte do indivíduo das práticas referentes ao cuidado de si, as quais conduzam o mesmo a expressar-se enquanto estética da existência.

Considerações finais

    Por fim, conclui-se aqui o estudo referente ao pensamento proposto por Michel Foucault e também as práticas descritas por ele em sua obra. Vimos ao decorrer do texto: os aspectos relacionados ao estudo do filósofo em destaque, em especial no que se refere ao resgate dos conceitos originais de ética e estética, pertencentes a antiguidade grega clássica; no papel a ser desenvolvido pelo indivíduo na efetivação das práticas que caracterizam o cuidado de si (no que diz respeito a manutenção da saúde física e mental, das relações de convívio e no controle da conduta e dos vícios); e no consequente reconhecimento do mesmo enquanto exercendo uma estética da existência (isto é, o processo de identificação de si próprio enquanto pensado como expressão artística); permeados por diferentes observações críticas, voltadas para: as inconsistências presentes no pensamento proposto; para os fatores negativos em torno da concepção original dos valores resgatados; e também na consequente aplicação prática desses mesmos valores dentro do contexto presente; com o intuito de proporcionar ao leitor um espaço para o desenvolvimento de reflexões críticas acerca das concepções tidas por Foucault, em relação à alguns dos conteúdos presentes na chamada: História da Sexualidade.

  Contudo, é válido reforçar a importância do estudo feito por Michel Foucault para as discussões presentes no contexto contemporâneo. Os volumes II (O uso dos prazeres) e III (O cuidado de si) da obra analisada representam um importante avanço no que diz respeito à esfera do pensamento filosófico desenvolvido no século XX, tornando-se dessa forma conteúdos indispensáveis no estudo da filosofia, capazes de proporcionar aos leitores o desenvolvimento de uma série de noções críticas acerca do reconhecimento da verdade e das formas de conhecimento, das diferentes manifestações de poder, e também acerca do indivíduo e suas ações, enquanto trazidas para os debates dos dias atuais.

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