Violência, poder e revolução: reflexões entre em Hannah Arendt e Walter Benjamin.



Davi Andrade Pereira

Introdução

  O texto presente teve como seu principal objetivo empreender uma discussão sobre a questão da violência, do poder e da revolução na perspectiva de dois autores clássicos, Hannah Arendt e Walter Benjamin. Tomando como principais referências as respectivas obras desses autores: "Da violência" (Arendt, 1994) e "Crítica da violência-crítica do poder" (Benjamin, 1986), ao longo das páginas, tratarei de sintetizar e tecer algumas relações e reflexões a partir dessas duas obras específicas.

  A escolha desses autores se deu porque nas obras citadas tratam de um mesmo tema e  abordam a questão do poder, da violência, da legitimidade, bem como do uso legítimo ou ilegítimo da violência, seja ela praticada pelo Estado ou praticada por indivíduos e coletivos (movimentos sociais e revolucionários), chegando a conclusões particulares e até mesmo antagônicas sobre essas temáticas. Oferecendo, justamente pela diferença de perspectivas, uma dimensão conceitual mais rica e plural das questões em debate.


Hannah Arendt

  Hannah Arendt (1906–1975) , mulher, judia, filósofa, jornalista, importante teórica da filosofia política; são muitas as facetas atribuídas a uma mesma pessoa. Em virtude de seu pensamento não dogmático, não facilmente classificável, imerso em discussões relacionadas à ética, teoria política, filosofia clássica, o esforço aqui empreendido para classificá-la ou enquadrá-la é um tanto vão. Muitos e a própria Arendt poderia negar alguns desses títulos, como já o fez, certa vez, ao afirmar não ser mais uma filósofa. No entanto o que é necessário dizer sobre ela é que decididamente é um das principais intelectuais do século XX, seu pensamento reverbera até hoje, como pode ser notado nos diálogos críticos estabelecidos por pensadores como Achille Mbembe e Judith Butler com o seu conceito de “banalidade do mal”. É autora de obras como "As origens do totalitarismo", "Eichmann em Jerusalém ", "A condição humana", "O que é política?".

 Para compreender o pensamento de Arendt sobre a violência é preciso traçar a distinção que a autora faz entre força, poder e violência, para Arendt, entende se por poder:

O “poder” corresponde à habilidade humana de não apenas agir, mas de agir em uníssono, em comum acordo. O poder Jamais é propriedade de um indivíduo; pertence ele a um grupo e existe apenas enquanto o grupo se mantiver unido. Quando dizemos que alguém está “no poder” estamos na realidade nos referindo ao fato de encontrar-se esta pessoa investida de poder, por um certo número de pessoas, para atuar em seu nome. (Arendt, 1994, p.33)

  Para Arendt, ao falarmos de poder cometemos o erro de confundi-lo com outras formas com as quais muitas vezes ele ocorre conjuntamente, por vezes: poder, vigor, violência, força, são percebidos como a mesma coisa, embora, na visão da autora, não o sejam. Poder, para Arendt (1994) está relacionado à capacidade de agir em conjunto e influenciar decisões políticas, não apenas se relaciona, mas é indissociável da política, pois, em sua visão, a possibilidade de ação política, coordenada, legítima, consiste em um reconhecimento e na possibilidades de empreendimento de uma ação conjunta.

  Em resumo, para Hannah Arendt, o poder não pode ser limitado apenas à capacidade de impor a vontade sobre os outros através da coerção ou da violência. Ela concebe o poder de uma forma mais ampla e complexa, relacionada a capacidade dos indivíduos de agirem em conjunto e influenciarem decisões políticas de forma participativa e democrática. 

  Este poder, autêntico, se manifesta quando os indivíduos exercem sua capacidade de agir juntos, respeitando a pluralidade de perspectivas e buscando o bem comum. É uma força nutrida da diversidade e da liberdade de expressão, permitindo a criação de novas possibilidades e soluções para os desafios políticos.

  Em contraposição, a violência, que Arendt considera como corrompida e nociva ao poder, é destrutiva. O verdadeiro poder é construtivo e democrático, fundamentado na cooperação mútua e no respeito às diferenças. Assim sendo, a violência, para a autora, distingue-se do poder, na medida em que:

O poder é realmente parte da essência de todo governo, mas o mesmo não se dá com a violência. A violência é, por sua própria natureza, instrumental; como todos os meios, está sempre à procura de orientação e de justificativas pelo fim que busca. E aquilo que necessita de justificar-se através de algo mais não pode ser a essência de coisa alguma. (Arendt, 1994, p. 40)

  Para Arendt, o poder é um fim em si mesmo e uma atividade inerentemente política, já a violência, segundo a autora, representa um meio, um instrumento a ser utilizado para alcançar determinados fins, nesse sentido; o poder, por ser político e deliberativo converge com valores democráticos e é capaz de produzir o novo. Já a violência, por estar associada a um processo de desarticulação do espaço público, da esfera deliberativa e democrática, e, portanto, do poder, uma vez que abre mão do debate para atingir seus propósitos, não é produtiva nem tão pouco compatível com o poder e a democracia.

  Acrescida a essa dimensão instrumental da violência, como meio e instrumento para alçar determinados fins, e do poder como um fim em si mesmo, tem-se uma dimensão bastante complexa sobre como a autora enxerga a existência de formas de violência com o poder, embora a autora reconheça esses (violência e poder) coexistem no mundo real, faz questão de ressaltar: 

Ademais, nada, conforme veremos, é mais comum do que a combinação da violência com o poder, nada menos frequente do que encontrá-los em sua forma mais pura e, portanto, mais extrema. Não se pode concluir daí que a autoridade, o poder e a violência sejam uma mesma coisa (Arendt, 1994, p.34)

  Para ela, apenas em situações extremas é cabível ao estado fazer o uso da força, mas  como um instrumento, não como finalidade, direcionado pelo poder, por exemplo, na defesa contra um golpe de Estado:

[...] nas questões internas, a violência funciona como o último recurso do poder contra os criminosos ou rebeldes, isto é, contra indivíduos isolados que, pode-se dizer, recusam-se a ser dominados pelo consenso da maioria.[...] (Arendt, 1994, p.40)

  Outro ponto significativo que Arendt utiliza para separar as concepções de violência e poder é que enquanto o poder depende do números, isto é, da união e decisão entre um grupo de pessoas e baseia-se na vontade de uma maioria deliberando sobre o que é público e comum, a violência não depende de números e pode ser feita a partir da vontade de um grupo reduzido e menor a coletividade, como, por exemplo, um país, uma nação, na medida em que o uso das armas permite inclusive agora contra a vontade da maioria. 

  Conforme ressalta:

A violência, é necessário lembrar, não depende de números ou de opiniões, mas sim de formas de implementação, e as formas de implementação da violência, conforme mencionei mais acima, como todos os demais instrumentos, aumentam e multiplicam a força humana. Aqueles que se opõem à violência com o mero poder, cedo descobrirão que se confrontam não com homens, mas sim por artefatos fabricados pelo homem, cuja desumanidade e força de destruição aumentam em proporção à distância a separar os inimigos. A violência sempre é dado destruir o poder; do cano de uma arma desponta o domínio mais eficaz, que resulta na mais perfeita e imediata obediência. O que jamais poderá florescer da violência é o poder (Arendt, 1994, p.42)

  Nessas termos, Arendt via a violência revolucionária como uma ameaça à esfera política, pois, ao tender a substituir o diálogo, a deliberação e o debate público pelo uso da força e da coerção, poderia levar à desintegração das instituições democráticas e à instauração de um regime autoritário. Nesse sentido, não poderia ser confundido com o poder.

  Ela alertava para o perigo de que a violência revolucionária pudesse resultar na desumanização tanto daquele que a praticasse quanto aos seus alvos, gerando um ciclo de violência e repressão que dificultaria a construção de uma sociedade justa e livre. Arendt valorizava a pluralidade de perspectivas e a diversidade de opiniões na esfera política. A violência revolucionária, ao importar uma visão única e absoluta, poderia eliminar essa pluralidade, cerceando a liberdade de pensamento e a possibilidade de coexistência compatível entre diferentes grupos e indivíduos.

  Por conseguinte, em vez de apoiar a violência revolucionária, Arendt defende a busca por alternativas não violentas para a transformação social e política. Ela via nas ações políticas não violentas, como resistência civil e desobediência civil, formas mais eficazes e éticas de promover mudanças significativas na sociedade. Portanto, Hannah Arendt se posicionou de forma crítica em relação à violência revolucionária, enfatizando os riscos e impactos negativos que ela poderia trazer para a política e para os princípios fundamentais da liberdade e da democracia, conforme afirma:

Quando as ordens já não são obedecidas, os instrumentos da violência não são de utilidade alguma; e esta obediência não é decidida pela relação autoridade/obediência, mas pela opinião pública, e, é claro, pelo número de pessoas que compartilham dela. Tudo depende do poder por detrás da violência. O repentino colapso do poder, prenunciando as revoluções, revela como a obediência civil – às leis, aos governantes, às instituições – nada mais é do que a manifestação exterior de apoio e consentimento. Onde tenha o poder se desintegrado, as revoluções são possíveis, mas não necessárias. (Arendt, 1994, p.42)

  Nesse sentido, enquanto direcionada pelo poder, isto é, baseada na opinião pública, a base para as determinações do estado, segundo Arendt, não baseiam-se quando legítimas na violência e na verdade enquanto o poder próspera a violência não precisa ser utilizada, mas na medida que há o “colapso” do poder civil, tensionam-se as disputas e revoluções se tornam possíveis, mas , novamente , não são necessárias, na medida em que não podem restituir o poder que destituem, a política que precisam ausente para exercerem uma violência ilimitada.

  Para exemplificar as distinções que Arendt defende necessárias entre violência e poder faz-se, aqui, uso de um exemplo empírico que pode esclarecer a relevância de alguns desses pontos. A progressão e tentativa de golpe no contexto brasileiro ocorrida em 08/01/23.

  O sentido profundo do que Arendt trás ao dizer que a violência não produz nada, pode ser apontado no sentido de que, por exemplo, de um golpe militar, a instalação de uma ditadura e de um poder autoritário, não nasce outras relações de poder e outra esfera pública, na verdade, estas são destruídas, e com elas a política, e com a política o espaço comum das diferenças, do diálogo. Resultando em um espaço onde, por não haver poder, a violência impera como um instrumento sem finalidade, isto é, vigora o autoritarismo.

  Se não entendemos a natureza do poder, se não distinguimos a violência de poder, acabamos por não distinguir facilmente, por exemplo, em que um movimento como o Bolsonarista tenta acabar com a política. Pois na medida em que rejeitavam a esfera pública, o espaço deliberativo entre os homens e ao invés do diálogo com a diferença, com a alteridade, buscaram ultrapassar as disputas da esfera do poder e passar por cima de todo o processo democrático.

  O que buscam não pode ser confundido como uma estratégia política ou de poder, no sentido de que ensejam a violência como um fim em si mesmo e pôr termo a política e a esfera pública.

  Nesse sentido, o movimento Bolsonarista utilizado como exemplo é rico para tratar dos motivos que levam Arendt a desenvolver a sua teoria. Arendt viveu em um contexto de intensa polarização política, da passagem da segunda guerra a guerra fria, ante a insurgência dos sistemas autocráticos nazifascistas, da revolução russa e do estanilismo. Para Arendt, traçar as fronteiras conceituais distintivas entre poder, política e violência era justamente contrapor-se ao esvaziamento destes conceitos, bem como ao resultado prático do esvaziamento e indistinção desses princípios na esfera pública. 

  Sendo assim, do esvaziamento dessas esferas e de sua dissolução em uma mesma coisa, Arendt via um conjunto de consequências práticas, isto é, enquanto os discursos vigentes tensionavam os limites do espaço público e do Estado democrático de direito, rechaçando-o em prol de uma violência revolucionária, conferir à violência o mesmo sentido que o poder, e a legitimidade de colocar-se como apenas mais uma estratégia válida a se fazer uso, parece-lhe situação desastrosa.

 Para exemplificar a perspectiva de Arendt, retomemos o exemplo do bolsonarismo. Durante as eleições de 2023, entre o então atual presidente Jair Bolsonaro e ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, tanto a mídia, como os comentaristas políticos da mídia hegemônica, trataram do tema como certa naturalidade, e definiu-se uma situação na democracia brasileira na qual, de repente, tornou-se parte do jogo, admissível, pedir intervenção militar, exigir golpe, exigir supressão das prerrogativas democráticas e destituir inclusive os representantes eleitos. Esta situação de condescendência passa também pelo discurso que não faz distinções entre a política, o poder e as disputas legítimas de poder, que passam pela esfera pública e a defesa ou empreendimento da violência, que tem como propósito suprimir a esfera pública.

 Isto é, enquanto enquanto a massa de pessoas se aglutinação em frente a quartéis, clamavam em favor de intervenção militar, a mídia recorriam ao termo "manifestantes" para tratar do tema, um eufemismo ante os impasses colocados. De forma correlata, enquanto se fala em intervenção militar, na mídia se falava em "aventura golpista", o cenário demonstra uma completa indiferença e o posicionamento ante este posicionamento como um lugar comum da política.

 Porém, na medida que estes abandonam a busca pela disputa eleitoral, pelo debate público e o bem comum, e optaram por impor determinado objetivo com o supervisor da violência, isto é pela dissolução do poder, da política, na perspectiva de Arendt seria inadmissível o tratamento destas como parte do plano da política e do poder.

  Os regimes totalitários instalados e erguidos a partir da violência, segundo Arendt, não podem, e nenhum poderia, dotar de sentido e dá um caráter emancipatório ou criativo aos resultados do processo violento. Pois o processo da violência “revolucionária” ou “reacionária”, para lograr sucesso, primeiro tem que desarticular os espaços onde os homens podem deliberar conjuntamente sobre os aspectos vida pública. Nesse processo, a esfera pública não é simplesmente destruída e depois erigida, para Arendt, uma vez desfeita, as estruturas violentas que a destruiu opera com o fim de manter-se no poder, isto é, de suprimir seus contrários, precisamente aplicando a violência como fim e impossibilitando o exercício da atividade política.

  Assim, quando a violência não dispõe de um fim, o que resta é a instrumentalização da violência pela manutenção das próprias estruturas que permitem a manutenção desta violência.

  Portanto, o pensamento de Arendt, sofisticado e complexamente construído, entrega definições de política, esfera pública, violência e seu posicionamento são em grande medida construídos a partir da referência da antiguidade clássica, a democracia ateniense lhe serve de exemplo e influência no modo como interpreta a realidade. Nesse sentido, podemos ponderar se de fato as distinções entre poder e violência são aceitáveis do ponto de vista analítico e se as construções conceituais de Arendt, como a do poder necessariamente derivado de um agir conjunto, e de uma aceitação, bem como sua definição de violência como oposta e antagônica ao poder partem de construções essencialidades desses conceitos e que não exploram os fenômenos como ocorrem na materialidade.

  Sendo assim, existe uma forte dimensão e preocupação ética nas construções que Arendt empreende, um forte senso de humanismo e um fervor democrático que deriva de sua influência e referências que toma para reconstituir os sentidos desses termos em diálogo com a Antiguidade Clássica. Porém, isto não diminui o valor das provocações feitas pela obra dessa autora, suas provocações são colocadas de modo tão perspicaz que implantam uma série de dúvidas a coisas antes dadas como certezas.

  Arendt acreditava que o espaço público é o espaço entre os homens, a esfera da deliberação e também a esfera da tomada de decisão, não apenas de delegação da decisão a outrem, e que o pensamento e a reflexividade são elementos inerentes à atividade política e também ao exercício da liberdade, nesse sentido, suas provocações, mesmo que questionadas, provocam um debate sobre esses princípios e um avivamento do espaço de coexistência de diferenças, tão caro a autora.

Benjamin

  Walter Benjamin foi um filósofo, crítico literário, ensaísta, tradutor e sociólogo judeu-alemão do século XX. Ele nasceu em 1892 e faleceu em 1940. Benjamin é conhecido por suas contribuições significativas para a teoria crítica, especialmente em áreas como cultura, crítica literária, história, arte e política.

  Sua obra mais conhecida é "A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica”. Benjamin também é reconhecido por seus escritos sobre a história, memória e tempo, como evidenciado em "Teses sobre o Conceito de História", onde ele propõe uma visão crítica da história, destacando a importância das narrativas subalternas e das lutas sociais na compreensão do passado, é sua a ilustre frase “A história deve ser estudada a contrapelo (ano)”. Sua abordagem interdisciplinar e sua capacidade de articular questões filosóficas com análises culturais e sociais tornaram Benjamin uma figura influente no pensamento contemporâneo, especialmente nas áreas de estudos culturais, teoria crítica e filosofia da história.

  Em "Crítica à violência, Crítica do poder” (ref), Benjamin traça as relações entre Estado, violência poder e justiça, demonstrando a convergência entre o poder estatal e o direito, como ele é por vezes uma forma instrumentalizada pelo Estado para exercer e fundamentar seu domínio.

  Para a construção de seus argumentos, o autor faz uma análise histórica dos princípios fundamentadores do direito, encarando o caráter processual e construído do discurso do direito e as variações dos seus princípios de legitimidade. Indo do direito natural, fundamentado na justificação da violência de um poder soberano, ao direito positivo, representado pelo discurso contratualista. Assim, Benjamin diferencia essas duas correntes, ao destacar a ênfase do jusnaturalismo nos princípios universais e na moralidade intrínseca, enquanto o juspositivismo se concentra na validade das leis dentro de um sistema legal estabelecido. O jusnaturalismo, pautado nos privilégio dos fins em relação aos meios, já o juspositivismo tendo que justificar os meios para atingir determinados fins.

  Benjamim, ao traçar esse percurso histórico, busca demonstrar como não existe uma separação entre direito, poder e violência, pois, para ele, a relação entre violência e poder é intrínseca e complexa, pois a violência muitas vezes é um instrumento pelo qual o poder é mantido e exercido.

  Nesse sentido, é significativo para a compreensão do pensamento de Benjamin, epara estabelecer sua diferenciação com o que fora proposto por Arendt (1994), a indistinção que ele aponta entre esses elementos, do direito, do poder e da justiça.

  Para esse propósito, busca-se compreender as nuances do pensamento benjaminiano a partir da sua concepção do direito enquanto instrumento de dominação, de legitimação do Estado, articulada por processos violentos, e o poder repressivo do Estado e a instauração de estados de exceção que visam justamente a fundamentação desse direito, isto é, sua legitimidade, podendo, inclusive, suspender os direitos constituídos, sob justificativa de proteção da  ordem do próprio direito.

  Como o autor ressalta:

[...] talvez deva se levar em consideração a surpreendente possibilidade de que o interesse do direito em monopolizar o poder diante do indivíduo não se explica pela intenção de garantir os fins jurídicos, mas de garantir o próprio direito. Possibilidade de que o poder, quando não está nas mãos do respectivo direito, o ameaça, não pelos fins que possa almejar, mas pela sua própria existência fora da alçada do direito [...] (Benjamin, 1986, p.157)

  Um exemplo significativo para fins de explicar as consequências práticas das relações estabelecidas pelo autor reside em sua análise da relação entre violência-poder e direito presente na ação policial e na função exercida pela polícia. Esta, na perspectiva de Benjamin, opera de forma opressiva uma vez que:

[...] É verdade que a polícia é um poder para fins jurídicos (com direito de executar medidas), mas ao mesmo tempo com a autorização de ela própria, dentro de amplos limites, instituir tais fins jurídicos (através do direito de baixar decretos). A infâmia dessa instituição, sentida por poucos, porque raramente a competência da polícia é suficiente para praticar intervenções mais grosseiras, podendo, no entanto, investir cegamente nas áreas mais vulneráveis e contra cidadãos sensatos, sob a alegação de que contra eles o Estado não é protegido pelas leis consiste em que ali se encontra suspensa e separação entre poder instituinte e poder mantenedor do direito [...] (Benjamin, 1986, p.166)

  Este trecho exemplifica a perspectiva benjaminiana sobre a força policial, a relação entre o Estado, poder, violência e justiça. Diante dele, torna-se mais palpável a ideia de que, sob determinadas condições, o exercício da violência pelo poder jurídico instituído se faz para garantir a sua legitimidade.

  Se, para Benjamin, as relações entre a estrutura jurídica em sociedades modernas é feita de modo a encarar como justa qualquer violência em prol da manutenção deste corpo jurídico, de sua própria ordem, esta torna injusta e passível de punição qualquer conduta que está fora desse controle, a violência também está sob o controle do estado e se faz para a manutenção do status quo, pois a violência sob as mãos de outros grupos, não representantes desse, ameaçaria esta ordem.

  Por conseguinte, a violência empreendida pela força policial, contra populações periféricas, como Benjamin aponta, dá-se sob a justificativa de instaurar ou manter determinada ordem, que é a própria manutenção do corpo jurídico que legitima esta violência.

  Disso decorre que sob determinadas regiões, onde o próprio estado e corpo jurídico suspende os princípios de legalidade, por exemplo, o direito a greve, protesto, sob a justificativa de que estes sujeitos ameaçam a ordem jurídica, e assim justificam a violência empreendida contra estes. Em outras palavras, sob a justificativa de manter a legalidade, suspende-se a mesma em determinadas esferas da sociedade e empreende-se a violência contra estas. Este processo descrito por Benjamin exemplifica como se dá o entrelaçamento de poder-violência e sistema de justiça, como formas construídas e também instrumentalizadas, como ferramentas que podem resultar em opressão e visam a manutenção de uns sobre outros, na medida em que essa ordem está também pautada em uma dominação de classe.

  Em contraste com Arendt, Benjamin não faz grande separação entre poder e violência, ou violência e política, tendo em vista a sua perspectiva compreende que o Estado como uma ordem erigida a partir de processos imersos em violência e poder e as bases para a sua manutenção não sejam outras. É conhecida a perspectiva marxista segundo a qual o Estado moderno capitalista é também um estado burguês. Nesse sentido a opressão e instauração de zonas de exceção, por esse Estado, são também formas de repressão de classe.

  Sendo assim, diferentemente de Arendt Benjamin não tem o mesmo olhar para com a violência revolucionária ou de uso da violência, para o autor na medida em que determinadas classe encontra-se já em posição de submissão a um estado de exceção e repressão, a violência empreendida no sentido da emancipação seria frutífera na medida em que libertadora dessa classe.

  Se Arendt diz que a violência não cria, para Benjamin esta legitimidade do poder não fora conquistada por um acordo comum, no espaço entre os homens e na decisão comum, como na concepção de Arendt, de poder inerentemente ligada a atividade política, e de política indissociável a democracia e as deliberações comuns sugerem. Para Benjamin, a própria ordem jurídica, sua legitimidade e relativa aceitação não apenas nasce de formas de violência de opressão como também necessita e faz uso dessas, instaurando estados de exceção para sobreviver.

  Tomemos como exemplo o próprio direito e o estado funcionam através desses. Para Benjamin em certos momentos históricos, a violência pode surgir como uma resposta legítima à opressão e à injustiça, especialmente quando os meios pacíficos de mudança são impedidos ou ineficazes, entretanto, também, critica a natureza destrutiva da violência e suas consequências, examinando as implicações éticas e políticas da violência, questionando seus efeitos na sociedade e nas relações humanas. Benjamin está interessado em encontrar formas de resistência e transformação que possam superar a lógica da violência sem reproduzi-la, nesse sentido o finalidade da violência revolucionária para Benjamin não resistiria na sua reprodução, mas no caráter transformador que vê nesta.

  A interpretação Benjaminiana da relação entre violência, poder, classe e do sistema jurídico enquanto instrumento de dominação, pode ser relacionada as perspectivas de outros autores marxistas, como Rusche e Kirchheimer (2004), no sentido em que estes convergem em suas leituras da relação entre a esfera do direito como instrumento de dominação. Enquanto Benjamin concentra-se na discussão sobre o direito e a repressão, os dois autores citados podem ampliar o argumento do autor, na medida em que ao demonstrarem as relações entre estrutura social, estrutura de classes e relações sociais de produção, enfatizam o caráter instrumental e construído do sistema punitivo e a sua relação com um sistema de dominação, controle social e repressão de classe.

  A perspectiva Benjaminiana, sobretudo no seu aspecto de entrelaçamento entre violência e justiça é rica para a compreensão de temas como a violência policial, a concentração de violência e repressão em territórios periféricos e os estados de exceção que possibilitam esta mesma repressão. Sendo assim, essas concepções podem ser relacionáveis e expandidas por uma perspectiva decolonial, na medida em que autores como Achille Mbembe (2018), Collins (2021), Michelle Alexander (2018) entre outros concebem a seletividade do sistema punitivo quanto a realização de políticas de segurança, uma seletividade que é estigmatizadora e opera a partir de uma criminalização de corpos negros. A seletividade policial, portanto, é explicada tanto pela perspectiva de Benjamin quanto pela perspectiva de autoras como Collins (2018), na medida em que alguns corpos, por sua condição de classe, raça e gênero, ocupam um espaço menos privilegiado nesta periferia e são mais comumente e brutalmente submetidos ao estados de exceção de supressão de direitos, permitindo pensar por exemplo, como se dá esse processo de opressão em relação ao gênero, mulheres, a raça, mulheres negras, e a classe mulheres negras e “proletariado”. O conceito de "Necropolítica", de certa maneira, também pode ser associado com a perspectiva Benjaminiana, pois converge no sentido de que Mbembe também compreende as relações entre poder violência e estrutura jurídica como tecnologias discriminatórias, porém, diferentemente de Benjamin, seu olhar é direcionado para formas de opressão não apenas de classe, mas também de raça. Portanto, pensar Benjamim em diálogo com estes autores, possibilita entender as nuances sob as quais opera a estrutura jurídica e também distinguir as experiências de opressão enredadas por estes estados de exceção em uma perspectiva de raça, revelando mais uma dimensão dessa mesma dominação e processo de instauração de estados de exceção, que funciona de forma interseccional, isto é, entre classe, gênero e raça.

  Benjamin e sua crítica do poder permitem uma interessante análise do papel do direito, da violência policial e de formas de repressão associadas a esses elementos. Ao buscar aproximar seu pensamento com a perspectiva de um conjunto de atores decoloniais, não buscou-se, aqui, dizer que estes autores e seus conceitos dizem exatamente a mesma coisa, mas que possuem pontos de convergências que possibilitam primeiro, uma crítica das estruturas de dominação, e depois, uma compreensão mais aprofundada do funcionamento dessas estruturas, que são, ao mesmo tempo, jurídicas e políticas, violentas e discriminatórias.

REFERÊNCIAS

ARENDT, H. 1994. Da violência. Rio de Janeiro: Relume- Dumará

ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa.

São Paulo: Boitempo, 2018

BENJAMIN, W. 1986. "Crítica da violência - Crítica do poder". In: Documentos de

cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos. São Paulo: Cultrix: Editora da

Universidade de São Paulo, p. 160-175.

COLLINS, P. H. BORGE, S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.

RUSCHE, G.; KIRCHHEIMER, O. 2004. Punição e estrutura social. RJ: Renavan, p.

109-279.

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