A SUB REPRESENTAÇÃO DO POVO BRASILEIRO: DESIGUALDADES DE RAÇA E RELIGIÃO NA POLÍTICA


Tarsila do Amaral


Autores: ANA CLAUDIA COÊLHO ISIDORO e RAFAEL FRANCISCO ALVES


RESUMO

O artigo a seguir visa investigar as relações existentes entre a (sub) representação política e os grupos “minoritários” brasileiros. Fazendo uso das reflexões trazidas por alguns autores estudados no bloco três da disciplina de Instituições Políticas Brasileiras, analisaremos as confluências entre raça e religião dentro do corpo político. Com o propósito de fomentar ainda mais o debate a respeito da interseccionalidade e ampliar o repertório teórico, apresentamos também as definições de Philips (2001) e Pitkin (2006) que trazem considerações pertinentes sobre as questões de representação.

INTRODUÇÃO 

O Brasil é um país com dimensões continentais que abarca uma pluralidade de classes, etnias e crenças, além de uma proporção significativamente maior de mulheres que formam a sociedade brasileira. Mesmo em meio a tanta diversidade, o setor político não reflete precisamente a sua população, tanto no campo das idéias quanto na presença propriamente dita1 , em sua maioria os políticos brasileiros pertencem a um nicho específico que não condiz precisamente com a grande maioria do povo brasileiro – se analisarmos o perfil de políticos eleitos e lançados como candidatos desde o surgimento da democracia e do período de redemocratização até os anos mais atuais, veremos que os candidatos correspondem a um perfil majoritariamente formado por homens brancos, de religiosidade cristã, héteros, etc. 

O presente trabalho está dividido em duas seções. Na primeira, tratamos das relações entre raça e política, trazendo as reflexões dos autores estudados na unidade que trata dessas questões no plano de curso da disciplina, relacionando quando possível com outras teóricas que julgamos possuir pressupostos relevantes para o debate. No segundo tópico veremos como a religião está intrínseca na política brasileira, desde as que mantiveram relações muito próximas até as que sofrem um processo de exclusão e marginalização tanto na esfera política quanto social. Por fim, nas conclusões finais, apresentamos uma síntese que correlaciona os problemas de representação política brasileira nas esferas de raça e religião, evidenciando as interseções presentes entre esses campos. 

1 Anne Phillips problematiza a sub representação dos grupos minoritários em detrimento da super representação de grupos dominantes, mesmo que quando esses grupos marginalizados são demograficamente maiores, são uma minoria nos espaços de poder, em razão disso, muito se tem debatido quanto a capacidade daqueles que não integram esses grupos como representantes dos “excluídos”. (PHILLIPS, 2001)

Raça e política: minorias étnicas no cenário brasileiro 

No que diz respeito à representação, muito se tem debatido a maneira como determinados corpos não estão devidamente representados no espaço de poder, a sua ausência reflete desigualdades estruturais como, por exemplo, o racismo e o machismo. Sendo assim, a discussão transita entre a política de ideias e a política de presença. De acordo com Phillips (2001, v. 9, n. 1, p. 268–290) “a política de ideias está sendo desafiada por uma política alternativa, de presença”. Essa afirmativa evidencia que os grupos marginalizados (mulheres, negros, operários de classe baixa, etc) estão reivindicando espaço e lugar na política ao longo dos anos, dessa forma, querem uma representação que vá além do discurso, historicamente corpos que não fazem parte dessas esferas reivindicaram a favor deles, porém o questionamento da autoridade e capacidade de falar em nome de outros problematizou a efetividade desse tipo de representação, desse modo, esses grupos entendem que para uma representação efetiva a política de presença (representantes que não só entendem, como integram esses grupos) garantirá que suas questões sejam tratadas com mais afinco. Alguns questionamentos surgem sobre como a presença pode realmente suprir as demandas dos grupos marginalizados e, conforme o pensamento de Pitkin, as atividades dos representantes importam mais que suas características e, o que acontece depois da ação é o que conta. Em outras palavras, representar significa agir nos interesses dos representantes de uma maneira responsiva a eles.2

Quando observamos o cenário brasileiro, podemos destacar algumas considerações importantes. Antônio Alves Torres Fernandes explora as relações entre raça e política em um contexto mais peculiar: as eleições municipais no Brasil. Em sua dissertação "Raça e Eleições Municipais no Brasil", o pesquisador busca compreender como as candidaturas não-brancas aparecem nas eleições municipais, analisa alguns dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Instituto de Geografia e Estatística (IBGE) e as mudanças que houveram na diversidade étnico-racial e na participação eleitoral entre as eleições de 2016 e 2020. Entre as variáveis analisadas, o estudo trata das regiões, ideologia partidária e o tamanho do partido para entender se e como ocorrem as mudanças no cenário de sub-representação de candidaturas não brancas, essas candidaturas apresentam um desempenho eleitoral inferior em relação aos candidatos autodeclarados brancos na disputa pelo legislativo municipal em 2020.

2 Quando levada ao pé da letra, acreditamos de maneira errônea que os problemas de representação serão solucionados imediatamente por políticas de presença, e que em tese os grupos marginalizados teriam suas demandas atendidas quando um representante de seu grupo se fizesse presente na política. Para Pitkin, o que deve ser levado em consideração é como os representantes respondem às demandas de seus representados. (PITKIN, 1967, p.209.)

Acerca da relação do tamanho do partido com o número de candidaturas municipais de não brancos, Fernandes aponta que partidos maiores tendem a ter estruturas organizacionais mais complexas, o que pode facilitar a inclusão de candidatos não brancos em suas listas eleitorais. Isso ocorre em razão de partidos grandes geralmente possuírem mais recursos e redes de apoio que podem ser mobilizados para recrutar e apoiar candidatos não brancos. Por outro lado, partidos menores podem ter estruturas mais informais e recursos limitados, o que pode dificultar a entrada de candidatos não brancos. 

Como apontado na introdução deste artigo, existe uma contradição entre a composição demográfica étnico-racial da população brasileira e sua presença nos espaços de poder. Campos e Machado iniciam a introdução de sua obra “Raça e Eleições no Brasil” partindo da afirmação de que a política no Brasil é feita majoritariamente por homens brancos (2020, p.15). Os autores reconhecem a centralidade que o tema ocupa no debate político, porém, expõem que ele só ganhou destaque recentemente. A pesquisa deles foi feita em um período de cinco anos e tinham como norte as relações de raça e política, bem como suas ramificações.3 Ainda que a presença de negros (as) e pardos(as) tenha aumentado substancialmente ao longo dos anos, elas sofrem uma disparidade grande quando são comparados os cargos que eles disputam contra candidatos brancos, segundo os autores, os homens brancos continuam a ocupar mais de 60% das cadeiras de governadores, deputados, senadores,etc. Ademais, é notória a observação feita pelos pesquisadores acerca dos estudos de raça na ciência política, embora essa área de conhecimento esteja vigorando no país ao pelo menos quatro décadas, pesquisas que abordem a relação entre raça como categoria analítica são muito escassas, quando comparadas às outras áreas das ciências sociais. 

Os questionamentos sobre quem pode falar em nome de quem, trouxeram contribuições valiosas para o debate político- racial, a representação hegemônica de um tipo de perfil social (homens brancos) revelam uma falha no sistema representativo, ainda que esses representantes sejam escolhidos pelo voto livre e universal, esse tipo de representação (ou como diria Phillips, super representação) apaga os grupos marginalizados historicamente dos espaços de poder. Em um país como Brasil, que possui relações conflituosas e ambíguas com as questões raciais, seja pela negação do racismo ou pela romantização das heranças 

3 Os autores destacam que diferentes motivos impedem ou dificultam o acesso de pessoas negras na política brasileira, entretanto, a falta de dados rigorosos dificulta uma análise pormenorizada dos fatos. A falta de dados mais completos se deve ao fato que até 2014 o TSE não contabilizava dados sobre raça/cor dos candidatos. (2020, p.15). 

coloniais, é comum que algumas pessoas não se dêem conta de como a ausência desses corpos em espaços privilegiados de poder refletem uma estrutura tão antiga quanto a própria democracia brasileira: o racismo estrutural. De acordo com Campos e Machado, “a sub-representação política de determinados grupos tem sido interpretada como uma injustiça social intrinsecamente antidemocrática.” (p.23). Uma tentativa de se equilibrar essas desigualdades, foram feitas ao tentar propor cotas raciais na política, essa proposta foi feita pelos deputados Luiz Alberto (PT -BA) e Paulo Cunha (PT-SP), porém elas foram rechaçadas no debate público em 2013. O tema das cotas raciais voltou a ser discutido muito recentemente, quando a deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) fez uma provocação sobre as cotas de gênero e as regras que obrigam os partidos a distribuir de maneira mais unânime seus recursos entre homens e mulheres, a deputada questionou se essas medidas não poderiam ser entendidas as candidaturas negras (2020, p.24). Retomamos as críticas da filósofa estadunidense Hanna Pitkin feitas a política de presença, que revela notar uma preocupação excessiva entre a semelhança dos representantes com os representados, deixando de lado o que de fato importa, a maneira como eles agem (accountability).4 Contrários a ideia que uma política de presença é de maneira generalizada representações especulares, eles trazem os pressupostos da cientista política Anne Phillips, que advoga em favor da política de presença. Segundo Phillips, as políticas de presença concedem a oportunidade de desconstruir estereótipos identitários; protegem os direitos e interesses de grupos historicamente excluídos, portanto mais vulneráveis; pluralizam a agenda política e permitem ações legislativas por grupos. (Phillips,1995,p.39). Em suma, políticas de presença são fundamentais, uma vez que a homogeneização dos representantes em somente um tipo de perfil social, não contempla a pluralidade dos grupos e nem seus interesses objetivos e subjetivos, afinal, diferentes grupos possuem diferentes interesses e perspectivas sobre um determinado problema que aflige suas respectivas comunidades.

Ademais, os autores exploram as razões pelas quais pessoas negras e pardas estão sub-representadas na política. São discutidos fatores históricos,como por exemplo o contexto histórico de discriminação racial e exclusão política enfrentada por pessoas negras e pardas ao longo dos séculos, que vão se ramificar nas instituições políticas e na concessão e no acesso a direitos básicos (a falta de acesso à educação de qualidade é um exemplo disso). Além do mais, a concentração de poder nas mãos de elites brancas e a desigualdade econômica,

4 Pode ser traduzido como "responsabilização" ou "prestação de contas". Refere-se à obrigação que indivíduos, organizações e instituições têm de prestar contas por suas ações, decisões e uso de recursos, e serem responsabilizados por eventuais falhas ou violações.

contribuem para essa exclusão. Também são abordadas questões como o racismo velado, que perpetua a marginalização dessas comunidades e dificulta sua participação política plena.5 Os aspectos relacionados ao recrutamento partidário também são evidenciados pelos pesquisadores, a desigualdade de raça e oportunidades influenciam a análise dos métodos e critérios utilizados pelos partidos políticos para recrutar novos membros e candidatos a cargos políticos, como filiação partidária, indicações internas, processos de seleção interna, entre outros. O perfil dos recrutados exploram diferentes características: demográficas, socioeconômicas e políticas, incluindo gênero, raça, classe social, ocupação, entre outros fatores.

Eles destacam que, historicamente, mulheres e candidatos negros têm enfrentado discriminação e desigualdades de acesso ao sistema político. No caso das mulheres, os autores apontam para a existência de barreiras institucionais, como sistemas eleitorais pouco inclusivos, falta de financiamento adequado para campanhas e estereótipos de gênero que prejudicam sua credibilidade como líderes políticas. Além disso, questões como dupla jornada de trabalho, responsabilidades familiares e violência de gênero também são citadas como obstáculos à participação política das mulheres. No caso dos candidatos negros, os autores destacam o racismo estrutural presente na sociedade brasileira, que se reflete na política. Eles apontam para a sub-representação de pessoas negras nos cargos políticos, bem como para a falta de apoio partidário e de recursos financeiros para candidaturas negras. Além disso, o preconceito racial e a falta de representatividade nas estruturas de poder político também são mencionados como desafios enfrentados por candidatos negros. Além disso, eles enfatizam a necessidade de se fazer uma avaliação do impacto do recrutamento partidário na estrutura e funcionamento do sistema político, incluindo a qualidade da representação, a legitimidade dos partidos e a eficácia das políticas públicas.

Religiosidade no Brasil: uma guerra cultural 

Quando abordamos o tema raça e desigualdades em razão do racismo, falamos de um sistema que de forma silenciosa desumaniza e estigmatiza grupos racialmente identificados. Essa estigmatização influencia e molda nossa percepção acerca dos grupos não brancos. Por muito tempo os valores universais e a qualificação do que era bom, aceitável e civilizado foi 

5 Podemos definir o racismo velado com base nas fundamentações teóricas de um pensador brasileiro influente no assunto, segundo Silvio Almeida, o racismo estrutural é um sistema de desigualdade racial que está enraizado nas estruturas e instituições da sociedade. Isso incluí políticas, práticas e normas que normalizam e perpetuam a discriminação sistemática de pessoas negras e pardas em várias áreas da vida. Para mais informações sobre o assunto ver ALMEIDA, 2020. Racismo estrutural. 

medido pela ótica colonizadora branca, a qual atribuía todo aspecto negativo às culturas e corpos que não integravam as suas sociedades. Essa visão ainda prepondera entre brancos e não brancos, embora pode-se notar que alguns grupos e movimentos sociais estejam promovendo um resgate às raízes afro e indígenas no Brasil, os espaços de poder ainda reproduzem exclusão e preconceitos estruturais que estão presentes no país desde o Brasil colônia. Analisar as confluências entre política e religião pode parecer ser dispensável, uma vez que é sabido tanto nos meios elitizados como nos meios populares que o Brasil possui uma democracia laica, e isto significa dizer em tese que o Estado não possui uma religião que influencie os exercícios democráticos. Contudo, alguns autores questionam a laicidade da nossa democracia e apontam haver ao menos três grupos religiosos influentes na política: católicos, protestantes, religiosos de matriz africana – os últimos, submetidos a sub -representação em razão das desigualdades étnico-raciais.

No artigo “Ativismo Negro e Religioso: O Caso da Frente Parlamentar de Terreiros no Congresso Nacional Brasileiro” Cunha (2021) apresenta uma reflexão sobre os grupos reliogos de matriz africana e como eles estão sendo inseridos na política brasileira, partindo do campo da legitimação do religioso no espaço público nacional. A autora explora a interseccionalidade entre raça e religião, destacando formas de opressões combinadas que afligem diretamente comunidades afro-brasileiras e suas experiências de exercer o direito da cidadania. Para a autora é necessário fortalecer alianças políticas, promover a educação e a conscientização sobre questões raciais e religiosas, bem como permanecer em constante luta por reconhecimento. Nem tudo são desafios, há também algumas conquistas como, por exemplo, o reconhecimento legal de algumas práticas religiosas e a implementação de políticas afirmativas. Neste sentido, podemos dizer que Cunha entende que para essas comunidades a religião não se limita a uma crença espiritual, mas também se configura como uma fonte de identidade cultural e resistência política, esses grupos historicamente discriminados e marginalizados consideram que a luta por direitos civis e reconhecimento é inseparável da expressão religiosa.

Sabe-se que, dentro do corpo político, as religiões católica e evangélica exercem um papel significativo nas decisões do Estado e é impossível falar do vínculo entre religião e política, sem mencionar o impacto duradouro que a igreja católica mantém desde o Brasil Colônia até a atualidade. Dessa forma, nota-se que, embora o Estado Brasileiro se denomine laico, é inegável a influência religiosa no meio político, sobretudo em grupos religiosos que possuem uma quantidade significativa de adeptos. Reforçamos a percepção de que relações de representação não são igualitárias para todas as religiões, uma vez que, novamente, se olharmos para o caso das religiões de matriz-africana, a representação não se dá somente por questões de crença, mas também para reforçar uma identidade cultural a muito tempo suprimida historicamente, resultante de um processo cumulativo de desvantagens provenientes de um racismo estrutural. 

CONCLUSÃO

A interseção entre raça, religião e política destaca a complexidade das formas de opressão enfrentadas por comunidades afro-brasileiras e outros grupos minoritários. Ao longo do texto, buscamos explorar a sub-representação persistente de grupos étnico-raciais e religiosos marginalizados nos espaços de poder político, assim como as lutas contínuas por reconhecimento, igualdade e justiça. A distinção entre a política de ideias e a política centrada na representatividade nos leva a questionar não apenas quem detém o poder, mas como esse poder é exercido e em favor de quem.

As políticas de representação emergem como uma forma de assegurar que vozes e experiências dos marginalizados historicamente venham a ser integradas nas decisões políticas, entretanto, os desafios persistem, desde a oposição à ações afirmativas até mesmo a influência contínua de estruturas de poder enraizadas que, ainda hoje, perpetuam a desigualdade. É somente através do engajamento contínuo que podemos alcançar verdadeira igualdade e representação para todos os cidadãos brasileiros, independentemente de sua raça, religião ou origem. À medida que continuamos a explorar essas questões e a avançar em direção a uma sociedade mais justa e inclusiva, é crucial reconhecer e enfrentar as profundas raízes do racismo, do preconceito religioso e das disparidades estruturais.

REFERÊNCIAS: 

ALMEIDA, Sílvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020. 264p. 

CAMPOS, Luiz Augusto; MACHADO, C. Raça e eleições no Brasil. Porto Alegre: Zouk, 2020. 

CUNHA, Christina Vital da. Ativismo Negro e Religioso: o caso da Frente Parlamentar de Terreiros no Congresso Nacional brasileiro. In: Novos Estudos, vol. 40, nº 2, pp. 243-259. 2021. 

FERNANDES, A. A. T. Raça e eleições municipais no Brasil (2020). Dissertação de Mestrado. 

PPGCP/UFPE. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/45467. Acesso em: 29 mar. 2024. 

PHILLIPS, A. De uma política de idéias a uma política de presença? Revista Estudos Feministas, v. 9, n. 1, p. 268–290, 2001. 

PITKIN, H. F. Representação: palavras, instituições e idéias. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 67, p. 15–47, 2006 


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